sábado, 12 de setembro de 2015

Os Caniceiros defensores do Pinhal do Povo:

A aldeia da Caniceira é a localidade mais populosa da Freguesia da Tocha (no Concelho de Cantanhede), com aproximadamente 600-700 habitantes. Nesta localidade existe um monumento invulgar, situado ao lado da Estrada Nacional 109, que passa pelo meio da localidade, numa das suas rectas com vários quilómetros de extensão (uma característica própria desta via, que a torna conhecida no país). Apresento algumas fotos do local, tiradas em Dezembro de 2012, durante uma volta de bicicleta.

O monumento, intitulado "Aos Caniceiros, defensores do pinhal do povo", obra do escultor José Plácido, inclui quatro blocos de pedra encimados por bustos de figuras humanas, cada qual tendo consigo uma ferramenta de trabalho típica da Gândara antiga, nomeadamente uma forquilha, uma enxada, um machado e... um búzio. 

Um búzio! Um búzio é uma ferramenta?
Sim! Muitos habitantes da Caniceira dedicavam-se à Arte Xávega na Praia da Tocha. Esta "arte" é um tipo de pesca de arrasto costeira tradicional, que ainda sobrevive em algumas localidades marítimas de Portugal, incluindo a Praia da Tocha (ou Palheiros da Tocha) e a Praia de Mira (ou Palheiros de Mira). Neste tipo de pesca, o búzio era tradicionalmente tocado muitas vezes (produzindo um som parecido ao de uma trompa), para chamar os pescadores para a faina, para anunciar à população a ida ao mar, sendo igualmente muito útil nos dias de nevoeiro cerrado (com visibilidade quase nula), para orientar os barcos no mar a partir do seu som tocado na praia.

(É a história na génese deste monumento que vou tentar contar a seguir. Devo advertir o leitor que baseio o meu relato no que ouvi ao longo dos anos de pessoas idosas, uma vez que não conheço fontes escritas. Se algum leitor ou habitante local tiver uma versão mais fidedigna dos factos, esteja à vontade para usar a caixa de comentários para acrescentar o que julgar necessário.)

A actual floresta costeira da Gândara tem menos de um século. Antes, era formada por dunas arenosas, com vegetação escassa e onde as árvores eram raras. Durante séculos, as populações locais habituaram-se a utilizar essa zona para seu usufruto (como terrenos baldios de uso comum, o denominado Pinhal do Povo). 

Contudo, tudo se alterou nas décadas de 20 e 30 do século XX, quando o Estado Português empreendeu a florestação desta zona, para proteger os campos agrícolas e até algumas localidades da Gândara, ameaçados de serem lentamente soterrados pelo avanço das dunas de areia. Diz-se que a actual Vila de Quiaios esteve em risco de ser despovoada e abandonada, tal era a gravidade deste problema!

Contudo, após ter sido feita a florestação, o Estado pretendia ficar com a propriedade e gestão da zona da recém criada floresta, retirando às populações locais o usufruto e os direitos adquiridos que tiveram durante muito tempo. Obviamente, esta atitude autoritária do Estado causou um profundo descontentamento nas pessoas, que contudo acabaram por aceitar o facto consumado em todas as aldeias da freguesia.

Em todas, não, porque a Caniceira foi uma excepção! Numa data que desconheço, nesse período de 1920-1940, a população local resolveu armar-se com as suas ferramentas (os tais machados, forquilhas e enxadas representados no monumento), arriscando as suas vidas para enfrentarem os representantes do Estado e as forças da Guarda Nacional Republicana que os escoltavam, em defesa dos seus antigos direitos. Terão acontecido alguns confrontos violentos, com vários feridos, mas felizmente sem mortos a lamentar!

Graças à atitude da população da Caniceira, representada neste monumento, o Estado voltou atrás na sua atitude e cedeu alguns direitos às populações locais, nomeadamente a venda a cada agregado familiar de um grande terreno por um valor acessível (as Glebas florestais, cada uma com a área aproximada de um hectare), bem como a gestão da área florestal pública por uma "Assembleia dos Compartes".

A população da Caniceira era conhecida no passado pelo seu carácter peculiar, moldado por alguns séculos de vida dura e pobre num ambiente natural agreste, num isolamento que só foi quebrado pela construção da Estrada Nacional 109, em meados do século XX. (Recomendo dar uma vista de olhos nas imagens de satélite, para ajudar à compreensão do texto.) 
Nesses tempos antigos, a aldeia e seus habitantes eram denominados na região (sobretudo pelos habitantes de outras localidades rivais) pelos termos pejorativos de "Turquia" e "Turcos", "os tais que viviam isolados e quase não se davam com ninguém", que alegadamente recorriam com maior frequência à violência para resolver desavenças dentro e fora da aldeia, que afastavam os visitantes indesejados (incluindo os pretendentes externos à mão das moças casadoiras locais)! 
(Bem, este último comportamento na verdade era comum a muitas das aldeias da região! Há um século atrás, um jovem que fosse cortejar uma moça casadoira a outra aldeia rival, sobretudo nos bailes tradicionais, arriscava-se a uma "espera" (termo do calão tradicional que designa uma espécie de emboscada) e consequente enxerto de porrada, dado pelos jovens locais! Claro que existiam algumas excepções nos casamentos, mas o número de casais com esposos originários de locais diferentes era bastante menor do que na actualidade.)

Para melhor compreender este carácter singular dos antigos habitantes da Caniceira, recomendo a leitura do texto "A Justiça do Cacete Caniceiro", no Blog do Manel (clicar para aceder). Garanto que gosto mesmo deste texto, não faço a recomendação para bajular o seu autor!


The defenders of the people's pinewood:

The village of Caniceira is the most populous place of the (Civil) Parish of Tocha (in the Municipality of Cantanhede), with around 600-700 inhabitants. In this village, on the side of national road 109, there is an unusual monument, dedicated to "aos Caniceiros, defensores do pinhal do povo" (can be translated "to the inhabitants of Caniceira, defenders of the people's pinewood").
This monument was made by the portuguese sculptor Mr. José Plácido. I present a few pictures, taken in December of 2012, during a bike ride.

This monument is dedicated to the people of Caniceira, the only village in the (Civil) Parish where the population defended their rights to the "people's pinewood" (one big area of "common land"), around 1920-1940 (i don't know the exact date, because i don't know written sources about it, only heard something about it by older people), and they succeed,  with beneficts to them and to the people from other villages.


A century ago, the coastal area of the region consisted of sandy dunes, with little vegetation, only some grass and a few trees. This was the "common land", used during centuries by the inhabitants of the region.
In the decades of 1920 and 1930, the Portuguese State made an important public work of planting a coastal forest in this huge area (see the forest in the satelite images). This was done to protect the region from the advancing sandy dunes, who were threatening to bury agricultural fields and even some villages.

But after it, the Portuguese State wanted to become the only owner and manager of these lands, who were "common lands" before. The people of the area did not like this loss of rights, but they slowly accepted it as a "fait accompli". But the inhabitants of the village of Caniceira, were the only to try to defend their rights, picking their agricultural and fishing tools as weapons, and risking their lives confronting the public authorities and the national gendarmerie force.

There were scenes of violence, but  fortunately only with people injured, with no deaths to regret. After that, the State stepped back and made a few concessions, giving each family in the area the right to buy a big piece of land (the "Glebas") by an affordable price, and giving the population the right to participating in the management of all forest area, by a deliberative assembly.







Localização / Location:


1 comentário:

Célia Gomes disse...

Uma história interessante e um monumento cheio de simbolismo, representando um povo que vivia simultaneamente da terra e do mar. Obrigada por partilhar esta história da Caniceira, aldeia muito antiga, onde o meu sétimo avô, Joam Francisco Delgadinho, já vivia no início do século XVIII.