terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Era Uma Vez o Homem Que Prometia Pegas (Aves)...

A pega é uma ave bastante comum em Portugal, conhecida por Pega-rabuda ou Pega-rabilonga (Pica pica) (clicar). Em tempos antigos, havia na Gândara o hábito de obter pegas para as conservar em gaiolas como aves domésticas. São aves inteligentes que também conseguem imitar alguns sons humanos ou do ambiente que as rodeia. Entenda-se assim que a pega era uma espécie de "papagaio dos pobres", uma ave de companhia acessível a pessoas de baixa condição económica.

Mas continuemos...
 
O Ti Manel do Forno faleceu há poucos anos, já em idade avançada, octogenário, mas quase nonagenário. Manuel de nome próprio, ganhou o apelido popular "do Forno" por ter sido proprietário de um forno de cal que laborou durante algumas décadas a Norte da aldeia da Caniceira (na Freguesia da Tocha e Concelho de Cantanhede), onde este homem viveu a sua vida. 

Alguns dos edifícios de apoio desse forno de cal ainda existem, próximos da Estrada Nacional 109 (a Norte da Caniceira), embora o velho forno propriamente dito já não exista, pois foi demolido há uns anos. Estando em desuso e sem manutenção há muito tempo, o forno encontrava-se em risco de ruir e, estando num local facilmente acessível, eram muitos os curiosos que tinham o hábito de entrar lá dentro, logo existia uma possível situação trágica à espera de acontecer, enquadrando-se assim a demolição no velho ditado português de que vale mais prevenir do que remediar.


Pouco há a dizer do Ti Manel do Forno em particular, foi mais um homem simples e modesto, com as suas virtudes e os seus defeitos, mais um dos muitos milhões de seres humanos que passaram por este mundo de forma praticamente anónima (sem terem conseguido garantir a imortalidade do seu nome e do seu legado, uma vez que não se destacaram em vida em áreas como a política, as ciências, as artes ou a economia). Foi mais um dos muitos milhões de seres humanos que apenas deixaram descendência para a posteridade e algumas recordações naqueles que privaram com ele.

E esses terão certamente na memória a brincadeira carinhosa que o Ti Manel do Forno costumava fazer com as pessoas que ia conhecendo, sobretudo a crianças e jovens (mais crédulos, ingénuos e receptivos), mas também a adultos e idosos. Depois de uma curta conversa de circunstância, ganha a confiança e a empatia do interlocutor, o Ti Manel costumava perguntar às pessoas se queriam uma pega. Tão boas eram as referências que fazia à ave, que a resposta do interlocutor à oferta era invariavelmente positiva. E ficava a promessa da entrega da pega num futuro indefinido.

Quando uma dessas pessoas voltava a encontrar de novo o Ti Manel, era comum a conversa da pega vir à baila, sempre num clima de boa disposição:
- Então ó Ti Manel, e a minha pega, quando é que ma dá?
O rol de justificações do Ti Manel era invariavelmente:
- Não me esqueci da tua pega, mas este foi um ano mau para elas, em que elas mal criaram, não consegui descobrir nenhum ninho delas...
Ou:
- Tens de esperar mais uns meses, ter paciência, que ainda não está na altura de elas criarem...

Como o leitor já deve ter percebido, essa pega nunca era entregue, nem consta que alguma tenha sido alguma vez entregue.
Mas fica a boa memória do homem e da sua brincadeira carinhosa, que praticou durante décadas com muitas das pessoas que ia conhecendo. Devem existir umas boas centenas de gandareses, desde jovens a idosos, a quem o Ti Manel do Forno terá um dia prometido oferecer uma pega.

Eu fui um deles e conheço alguns outros. E o leitor, foi uma dessas pessoas? Se foi, poderá utilizar a caixa dos comentários para contar a sua história pessoal da pega prometida que esperou em vão.



Localização da aldeia da Caniceira:


Localização do antigo forno de cal do Ti Manel do Forno:

1 comentário:

Manel disse...

Eu privei de muito perto com o Ti Manel do Forno.
Ele tinha uma vinha no Escoural, e tratava-nos por parente. Prometia pegas gaios e pintassilgos. Claro que nunca nos trouxe nenhuma das aves mencionadas, mas nunca faltou ao prometido.
Tinha muitos amigos. Um deles era o meu pai.
Faleceu na década passada.